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A Escuta em Psicanálise - Por Madson Oliveira




“Psicanalisar” é escutar.

Talvez pareça totalmente óbvio ou totalmente clichê relacionar a arte da psicanálise com a atitude mais passiva a qual um ser humano possa se submeter. Afinal de contas, escutar é parar, é encerrar-se em torno do universo das palavras ditas pelo outro para assim perceber texturas, tramas, tons e intentos para então abrir-se em direção às descobertas relevadas pelas palavras, sentenças, lapsos e silêncios.

A própria história da psicanálise se confunde com o aprimoramento da história da escuta como método terapêutico. Escutar e psicanalisar são faces de uma mesma moeda, de um mesmo fenômeno que mudou a maneira como vemos o outro e como olhando para dentro desse outro. Sem escuta seria impossível a psicanálise e foi a psicanálise, e prioritariamente ela, que deu à escuta um lugar de destaque na compreensão do eu, do outro, do nós.

O próprio pai da psicanálise precisou reinterpretar-se quando abruptamente confrontado a usar mais a escuta do que a fala, o eu-médico, acostumado a diagnosticar, falar e decidir precisou dar espaço para ou eu-ouvinte, esse, dotado de uma maestria poética que rege a atenção ora flutuante, ora tão focada com a mesma batuta que projeta a fala do seu analisando para si e em favor de si. Psicanalisar é escutar e escutar despindo-se das ressonâncias neuróticas para chegar ao verdadeiro som do eu.

Embora a sociedade viva a era do falar como sinônimo do existir, do comandar e do posicionar, o estardalhaço das muitas vozes tem demonstrado que séculos de muitas vozes e poucos ouvidos tem cobrado um preço muito alto. Uma sociedade barulhenta que não se escuta, não se compreende. Uma geração de surdos coletivos gritando para que suas vozes sejam ouvidas. O mundo se tornou insalubremente barulhento e insuportavelmente individualista. Quando não há escuta o que sobra é o grito desesperado do eu-perdido manifestando-se sem autocompreensão.

Quando se deu conta do poder da escuta, Freud certa vez escreveu que escutar é a arte de transformar o sofrimento neurótico em miséria ordinária e é apenas nesse lugar de miséria que é possível surgir a inquietação, o desconforto, a angústia que leva à mudança. Escutar o que o outro diz, como ele diz e não como o terapeuta gostaria que ele dissesse ou mesmo gostaria de ouvir, essa é a escuta que só a psicanálise pode oferecer.

Psicanalisar é entreter-se no que é dito em uma escuta despretensiosamente investigativa, como uma busca sobre a verdade daquilo que está sendo dito, como o agitar sutil da bateia que procura os flocos dourados entre os grãos de areia, retirando o que não reluz para que no fim só sobre o que é precioso, aquilo que é ouro, e o que é ouro em psicanálise é a conexão sem ruídos entre o que é dito e aquele que diz – a “cura” em psicanálise só pode existir se a escuta estiver presente.

Mas, para que a escuta em psicanálise aconteça é necessário que o analista se coloque em risco – o risco de tornar-se um apaixonado pela escuta – mesmo quando o que ele ouve é o silêncio. Psicanalistas não buscam ouvir apenas sons, verbetes ou sentenças, sua escuta é por sentido, significado, por verdades que não conseguem ser expressas por palavras, pois geralmente elas não conseguem ir tão além. Psicanalisar é escutar além do dito, do manifesto.

A arte desta escuta é metódica e mágica, há ciência, mas também há poesia, graça e leveza. Surge no intento de desentender para depois compreender, de quebrar o que se acha inteiro para depois reerguer o que é completo. “Trazer e escutar pessoas para fora de si, para fora de suas identidades, para mais além das próprias identidades e ficções sobre si mesmas é o que faz da arte da escuta uma forma de transformação e de cura.”[1]

Esse é o grande segredo em psicanálise. É o que faz desta arte um revigorante espaço de autodescoberta, de reinterpretação do eu. O psicanalista não cria as regras da escuta, ele não tem esse poder, não obstante, deixa-se guiar pelo sair de si para incorporar-se na fala do outro, na mesma medida em que tira desse outro sua psseudossegurança de sentido ou significados e no ritmo dessa dança, psicanalisar é como uma valsa onde as vozes que sempre estiveram ali guardadas no silêncio dos recalques, das repressões e das angústias agora coreografam livremente ao som das palavras, das catarses e do silêncio.

Escutar em psicanálise é, portanto, perder o sentimento de domínio e de controle da sessão. É compreender que o falar é tão importante quanto o escutar, mas sem escuta não há psicanálise, há apenas sussurros, grunhidos, barulhos sem sentido.

Não compreender tal verdade – a de que a escuta em psicanálise é transpor a barreira do controle para perder-se no inconsciente do outro, assumindo sua perspectiva e encontrando a criança perdida entre as muitas vozes das lembranças – pode levar muitos terapeutas para distante do seu papel como psicanalistas, como aqueles que escutam.

Psicanalisar é a persistência na arte da escuta como vital para a ressignificação do eu e a escuta em psicanálise é a base para que tal acolhimento terapêutico manifeste-se em sessão interagindo com o analisando em suas fantasias, lembranças e tragédias. Escutar é além de tornar-se um espelho para quem está no divã (embora isso contrarie alguns antigos mestres), mas é ter coragem para se despir do personagem analista, egóico e onipotente, para longe de juízos, valores ou do ansioso desejo pela fala, fazer o sujeito ouvir sua própria mensagem, só que agora livre dos ruídos, interferências e barulhos externos.

Psicanalisar é escutar, é editar o que é falado colocando cada coisa em seu lugar, como uma dona de casa que sabe onde cada móvel pode e deve ser realocado para que tudo em sua casa esteja bem apresentado.

Esse é o ponto máximo em terapia, quando finalmente, a escuta vira insight, insight vira fala e a fala vira o novo eu. Para isso não existe regra, não existe tempo, existe apenas psicanálise.


[1] DUNKER, Cristian Ingo Lens e THEBAS, Claudio. O palhaço e o psicanalista: como escutar os outros pode transformar vidas. São Paulo: Planeta, 2019.p.47.

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